Entrevista com Janicy Rocha: práticas informacionais no fazer científico

As práticas informacionais no fazer científico, enfocadas na produção do conhecimento enquanto cognição distribuída foram o tema da tese da membra do Epic Janicy Aparecida Pereira Rocha, orientada por Cláudio Paixão Anastácio de Paula e coorientada por Adriana Bogliolo Sirihal Duarte, e defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais – PPGCI UFMG. Nesta entrevista, Janicy perpassa pelos principais passos percorridos ao longo do estudo.

Foto de Janicy Rocha na defesa da tese dela no PPGCI UFMG
Arquivo pessoal

Quais foram as principais teorias basilares da pesquisa?

Dois principais quadros conceituais foram adotados na construção teórica: práticas informacionais e Cognição Distribuída. Práticas informacionais é apresentada como uma perspectiva e a Cognição Distribuída como uma teoria para a operacionalização de uma pesquisa sob tal perspectiva. Na pesquisa, consideramos que as práticas informacionais são localizadas temporal e socialmente, sendo influenciadas por estruturas físicas e elementos não humanos presentes no contexto no qual se constituem e do qual são constituintes. Consideramos também que o conhecimento é uma construção discursiva mediada pela interação entre sujeitos.

Assim, julgamos pertinente adotar a Cognição Distribuída, proposta na década de 1980, como suporte teórico. Essa perspectiva defende que a cognição, além de ser um fenômeno distribuído entre dois ou mais indivíduos (dimensão social), também o é entre esses indivíduos, ambientes e artefatos cognitivos (dimensão artefatual) com os quais eles se relacionam e perdura ao longo do tempo (dimensão temporal). Isso permite que a unidade de análise seja ampliada do sujeito individual para as relações funcionais de todos os elementos que participam de dada atividade ou interação, sejam eles humanos ou não humanos. Elementos não humanos, como objetos e recursos utilizados pelos sujeitos em suas atividades, na Cognição Distribuída, são denominados artefatos cognitivos.

Qual é e como foi traçado o problema de pesquisa?

A construção do problema de pesquisa é perpassada pela influência de vertentes tradicionais das Ciências Cognitivas nos “estudos de usuários” da Ciência da Informação. A evolução gradativa na adoção dessas perspectivas em estudos de usuários é revisitada, especialmente no que concerne à influência do cognitivismo nos estudos de comportamento informacional. Esses estudos, geralmente, consideravam que o indivíduo adquiria o conhecimento que lhe faltava, ou preenchia uma lacuna informacional, captando e processando a informação, mas sem levar em conta que o conhecimento também é construído no viver cotidiano. Além disso, na Ciência da Informação brasileira, foram identificados poucos estudos que adotam arcabouços teóricos das Ciências Cognitivas para além do cognitivismo e do conexionismo.


Pressupostos da Cognição Distribuída se apresentaram como uma alternativa promissora para fundamentar os estudos de usuários desenvolvidos conforme a perspectiva de práticas informacionais”


Ampliações na subárea dos estudos de usuários demandam que o usuário da informação seja compreendido em suas diversas dimensões e suas ações podem ser entendidas como resultados de um processo social, experiencial, histórico, contextual e contingencial. Para nós, os pressupostos da Cognição Distribuída se apresentaram como uma alternativa promissora de/para fundamentar os estudos de usuários desenvolvidos conforme a perspectiva de práticas informacionais, o que levou à nossa pergunta de pesquisa: “Quais princípios da Cognição Distribuída são condizentes com a perspectiva de práticas informacionais e como esses princípios se manifestam na interação dos sujeitos informacionais entre si, com os artefatos cognitivos e com a informação científica?”

Quais os objetivos desenhados pela pesquisa?

A pesquisa teve como objetivo geral investigar as práticas informacionais relacionadas à produção colaborativa do conhecimento científico e tecnológico em um grupo de pesquisa de uma instituição de saúde, ciência e tecnologia, a partir de princípios da Cognição Distribuída.
Alcançar o objetivo geral implicou decompô-lo em quatro objetivos específicos:
– identificar princípios da Cognição Distribuída que fossem condizentes com a perspectiva de práticas informacionais;
– identificar artefatos cognitivos relevantes para as atividades do grupo de pesquisa, entendido como sistema cognitivo distribuído, e os fatores motivadores para o uso desses artefatos;
– analisar como os sujeitos se engajavam e interagiam durante as atividades relacionadas à produção do conhecimento científico;
– verificar formas de manifestação da dimensão temporal nas práticas informacionais relativas à produção do conhecimento científico pelos integrantes do grupo de pesquisa.

Quais métodos foram utilizados para coleta e análise de dados?

Diversos pesquisadores de práticas informacionais defendem que esses estudos demandam um “olhar etnográfico”. Em consonância com esses pesquisadores, mas também com a literatura sobre Cognição Distribuída, adotamos a etnografia cognitiva como método tanto para coleta como análise de dados. Se comparada com a etnografia prototípica, ou tradicional, a etnografia cognitiva também pressupõe a imersão do pesquisador no ambiente empírico, porém com menor intensidade. Assim, a coleta de dados ocorre em menor escala; a observação é intencional, guiada pelos objetivos da pesquisa definidos previamente, e deve acontecer mediante a adoção de técnicas estruturadas de coleta de dados. As técnicas de coleta de dados adotadas pela etnografia cognitiva são similares às da etnografia prototípica.


O sujeito da pesquisa possui conhecimento superior sobre o domínio pesquisado e o pesquisador é um aprendiz daquele ambiente”


Conforme características do ambiente empírico, optamos pela adoção de três técnicas de coleta de dados: observação, entrevistas contextuais e entrevistas semiestruturadas em profundidade. Associadas à observação, as entrevistas contextuais foram utilizadas no início da pesquisa para entendimento do ambiente empírico. Uma entrevista contextual parte do pressuposto de que o sujeito da pesquisa possui conhecimento superior sobre o domínio pesquisado e o pesquisador é um aprendiz daquele ambiente. Em um segundo momento, após a compreensão do ambiente empírico e já com os recortes da pesquisa estabelecidos, foram feitas as entrevistas semiestruturadas em profundidade sobre tópicos mais específicos. A imersão no ambiente empírico durou 1 ano e 4 meses.

Já a análise dos dados coletados nesse período aconteceu a partir da transcrição literal das gravações das entrevistas, que associadas às notas do diário de campo, foram organizadas em três amplos eixos de análise originários da teoria da Cognição Distribuída: distribuição por artefatos, distribuição social e distribuição temporal. Associadas a cada um desses eixos de análise foram criadas categorias e subcategorias que emergiram dos dados coletados, a partir de regularidades e irregularidades identificadas nos discursos dos participantes.


Ser integrante do grupo demanda não apenas o domínio de artefatos cognitivos e o conhecimento de protocolos e técnicas”


Quais são os principais resultados alcançados pelo estudo?

O resultado geral da pesquisa consiste em uma descrição das práticas informacionais relativas à produção do conhecimento pelo grupo de pesquisa estudado. Além de descrever como os participantes usam o que sabem e os recursos dos quais dispõem para fazer o que fazem, é discutida a forma como significados do fazer científico são criados, propagados e contestados pelos participantes dentro do grupo de pesquisa.
De forma mais específica, foram mapeadas as quatro principais etapas da produção do conhecimento científico no referido grupo (sendo elas a descoberta da informação, a obtenção dos dados de pesquisa, o processamento/análise desses dados e a escrita de relatos de pesquisa). Em cada uma dessas etapas, foram identificados os artefatos cognitivos mais relevantes e as motivações para o uso, bem como alguns pontos que carecem de melhorias como, por exemplo, a preservação dos dados de pesquisa por meio de uma política de backup mais consistente e a necessidade da adoção de um Plano de Gestão de Dados. De forma geral, identificamos que a utilização de artefatos cognitivos para gestão de pesquisa, como ferramentas para gestão de referências e escrita colaborativa, por exemplo, é bem limitada. Já os artefatos técnicos utilizados nos experimentos e os softwares para análise de dados são bastante robustos e modernos.

Adicionalmente, identificamos que, no ambiente empírico, as práticas informacionais se constituem e são articuladas, propagadas ou contestadas em interações sociais durante ações informacionais rotineiras da atividade de pesquisa. Embora tais práticas informacionais possuam certa regularidade originária de rotinas e hábitos, elas emergem de atividades situadas, da divisão do trabalho, da partilha de responsabilidade, de soluções constituídas na ação e de negociações discursivas protagonizadas pelos integrantes do grupo de pesquisa. Ser integrante do grupo demanda não apenas o domínio de artefatos cognitivos e o conhecimento de protocolos e técnicas. É preciso partilhar os referenciais teóricos básicos, a linguagem técnica do grupo e sua cultura colaborativa. A proficiência surge com o tempo de vínculo e com o engajamento nas atividades.


Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação
Título da pesquisa: A produção do conhecimento como Cognição Distribuída: práticas informacionais no fazer científico.
Orientador: Claudio Paixão Anastácio de Paula
Coorientadora: Adriana Bogliolo Sirihal Duarte
Linha de pesquisa: Gestão da Informação e do Conhecimento
Data de defesa: 20/04/2018

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